Como a desatenção pode impactar a vida adulta


“O porta-malas estava carregado e o coração nem se aguentava mais de tanta ansiedade. Pedro estava de partida para uma nova etapa de vida. A viagem durou 14 horas e dentro de 3 dias seria a tão esperada cerimônia do casamento. Mas, surpresa, ao descarregar as malas ele descobriu que tinha esquecido justamente o terno! Quase uma tragédia, considerando que foi feito sob medida. Mas o noivo foi salvo pela vizinha que tinha a chave e enviou por Sedex.”

Esse e outros esquecimentos, motivados pela desatenção, acompanharam desde criança a vida de Pedro. Ele sofreu muito até se tornar um adulto bem sucedido, formado na profissão que escolheu e prestes a se tornar um “pai de família” responsável. Mas Pedro luta todos os dias para vencer a ansiedade e as dificuldades de organizar o tempo e conviver em equilíbrio com todos.

Quando criança e seu comportamento se tornou impraticável, todos desconfiaram de TDAH,  mas a mãe se recusava a dar remédios ao filho e não buscou ajuda psicológica. Assim, a infância agitada passou entre conflitos e apoios, enquanto os pais e professores particulares tentavam driblar as dificuldades, não sem antes enfrentar escolas despreparadas. O boletim tinha sempre notas vermelhas, ele não conseguia parar sentado para fazer as tarefas, uma professora disse para os pais que ele era autista, a diretora reclamava do comportamento e das constantes brigas com os colegas. Enfim, motivos não faltavam para ser a criança que parecia fazer tudo errado e receber críticas veementes que quase destruíram sua autoestima.

Mas o menino que tinha tudo para fracassar acabou entrando na faculdade, venceu vários concursos de criatividade em design, mostrando a todos e especialmente a si mesmo que talento e força de vontade podem superar as dificuldades vivenciadas pelos portadores de TDAH. Mesmo com todo reconhecimento, quando se formou e a ansiedade atrapalhava as entrevistas de emprego ele foi buscar ajuda de um psiquiatra especialista em TDAH e se tratou com  remédios e terapias.

Etapa vencida, emprego arrumado, vida nova que se inicia, ele continua atento aos sintomas, faz academia, caminha e pratica judô. Muitas vezes esquece de pagar as contas, perde a chave do carro, chega atrasado aos compromissos. Mas todos os dias se organiza buscando superar as dificuldades de memória, desatenção e impulsividade.

Se comparado com seu comportamento da infância ele melhorou consideravelmente. Mas um adulto que se descobre TDAH pode levar um grande susto com os sintomas, porque conviveu com eles a vida toda sem entender as causas e talvez já esteja até sofrendo muitas consequências ruins.

A prevalência de TDAH no mundo é estimada em 5,29% da população¹ e as chances dele continuar na idade adulta são de 50% a 60% 2-5. O transtorno, que se manifesta desde a infância, em muitos casos só é diagnosticado na fase adulta, quase sempre quando os sintomas começam a provocar problemas mais graves. Embora se tornem menos inquietos, os adultos com TDAH são desatentos e esquecidos, impulsivos e com dificuldade de avaliar como seu comportamento afeta os outros. Em muitos casos os sentimentos de inadequação podem levar à depressão e ao uso de drogas e álcool.

Muitas histórias como a de Pedro se repetem pelo mundo. Algumas com final feliz, outras nem tanto. Adultos que conviveram com o TDAH uma vida toda sem saber e um dia descobrem a causa das suas dificuldades cotidianas. Adultos que não conseguem se organizar, cumprir compromissos, finalizar tarefas e acabam gerando conflitos familiares ou no ambiente profissional. Quando finalmente recebem o diagnóstico do TDAH e seguem os tratamentos, podem sentir um grande alívio em todos os campos de sua vida. Sim, eles podem até viver no mundo da lua, mas quando estão no mundo real se tornam mais capazes de caminhar com mais segurança.

1. Polanczyk G, de Lima MS, Horta BL, Biederman J, Rohde LA.The worldwide prevalence of ADHD: a systematic review and metaregression analysis. Am   J Psychiatry. 2007;164(6):942-8.

2. Lara C, et al. Biol Psychiatry 2009; 65:46-54.

3.Faraone SV, et al. Psychol Med 2006; 36:159-165.

4. Barkley RA, et al. J Abnorm Psychol 2002; 111:279-289.

5. Ebejer JL, et al. PLoS One 2012; 7:e47404.

Julho/2020 C-ANPROM/BR//1996