Mulheres distraídas, maridos e filhos enlouquecidos.


São seis horas da manhã e o marido de Cristina está na cozinha fazendo o leitinho das crianças enquanto ela se arruma para trabalhar. Santo homem! Ninguém imagina o que ele passa nessa vida. O bebê chora de fome e “onde está a bendita da mamadeira?”. Abre todas as portas dos armários, procura no berço, entre os brinquedos e...nada. Acaba encontrando dentro do armário de roupas de quem? Da esposa! Nem ela sabe como a mamadeira foi parar lá, assim como nunca sabe onde deixou as chaves do carro, o próximo compromisso dos filhos, o carregador do celular e tantos outros objetos do cotidiano que teimam em se esconder nos lugares mais insólitos.

Na verdade os objetos não têm vida própria, ela vai deixando pelo caminho, assim como sapatos, peças de roupa suas e das crianças, livros e sacolas de compras. A vida naquela casa é uma eterna maratona de perde e encontra, num aparente jogo que nada tem de divertido e causa constante desgaste em toda a família.

Mas afinal, o que acontece com ela? Tão focada e brilhante na sua profissão de designer e tão distraída dentro de casa. A mãe está sempre por perto para ajudar no que pode, leva um lanche para os netos, arruma alguma coisa que logo depois estará fora do lugar. Ela sabe das dificuldades que Cristina enfrenta desde criança e sabe como foi tudo tão sofrido até que procurou a ajuda de um profissional de saúde e teve um diagnóstico inesperado para a filha: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH.

Antes tarde do que nunca, o diagnóstico só aconteceu quando as exigências escolares passaram a ser mais complicadas e entrar na universidade tornou-se um grande desafio, pela falta de concentração e organização. Com apoio de terapia, Cristina fez valer sua inteligência privilegiada e venceu essa etapa. Mas por que demorou tanto tempo para a família perceber e tomar alguma providência?

Meninas com TDAH apresentam sintomas bem diferentes dos meninos, enquanto eles demonstram maior propensão para a hiperatividade elas são bem mais desatentas. Por exemplo, não prestam atenção aos detalhes e são mais propensas ao esquecimento.¹ Isso faz com que elas perturbem menos na escola e assim as suas dificuldades demoram a ser percebidas como algum transtorno que precise de acompanhamento. E assim elas crescem levando para a vida adulta todos os sintomas e alguns traumas de sua “vida paralela” que acontece no famoso “mundo da lua”.

Mas agora, casada, Cristina tem que administrar uma casa, os filhos, dar conta das necessidades afetivas e práticas da família e das suas próprias demandas pessoais e profissionais. E tudo isso se transforma num verdadeiro caos a ser compartilhado com todos. Sorte dela que tem um marido compreensivo, o que nem sempre acontece. O mais comum é que todos acabem perdendo a paciência e o cotidiano se transforme numa verdadeira guerra de acusações. Os filhos crescem nesse caos, passam a fazer as suas cobranças também e a mulher se sente cada vez pior.

A expectativa do grupo familiar e de toda a sociedade é que as mulheres organizem o lar, as refeições, a casa, os horários e até mesmo o lazer. Demandas que sobrecarregam todas as mulheres que agora acumulam uma vida profissional, com outras tantas cobranças de performances mais que perfeitas. Mas se as mulheres não são super-heróis, nem querem mais vestir essa pesada capa dos poderes extraordinários, as que sofrem com os sintomas do TDAH podem submergir diante de tantas dificuldades simultâneas. Vergonha, sensação de culpa e baixa autoestima acompanham esse quadro que merece e pode ser superado.² Hora de buscar ajuda novamente. Até porque os estudos já sugerem que os sintomas podem ser mais severos nas mulheres adultas do que em homens. Destacando-se a prevalência de desatenção grave, como dificuldades de escuta e facilidade de distração e de hiperatividade, incluindo excesso de conversa e desentendimento nas respostas. Talvez por falta de diagnóstico e tratamento na infância os sintomas se revelam bem mais problemáticos para as mulheres na vida adulta.³ Em seu livro The Queen of Distraction: How Women with ADHD Can Conquer Chaos, Find Focus, and Get More Done, Terry Matlen, psicoterapeuta e especialista em TDAH, relaciona alguns recursos que podem e devem ser utilizados pelas mulheres portadoras de TDAH:

• Conectar-se com outras mulheres que têm TDAH, para que possam compartilhar experiências de como as outras gerenciam as dificuldades.

• Revisar pensamentos negativos e substituí-los por pensamentos positivos.

• Concentrar-se em seus pontos fortes e celebrar suas habilidades e talentos.

• Aceitar que o TDAH é parte de sua neurobiologia - não uma falha de caráter - e usar sua criatividade para atividades divertidas e agradáveis.

• Ser mais exigente com as pessoas com as quais compartilha sua vida. Ficar perto das pessoas nas quais você confia e que valorizam seus pontos fortes. Afastar-se das que julgam seus comportamentos.

E, enfim, o último dos conselhos da autora deveria ser sempre o primeiro:

• Procurar um terapeuta que tenha um alto grau de compreensão sobre como o TDAH afeta as mulheres.

E, como diz Terry Matlen "a terapia pode ajudá-la a perceber que você é uma mulher perfeitamente capaz, que acontece de ter um cérebro TDAH".

E esse é exatamente o ponto onde a mulher com TDAH deve firmar toda a sua fé, saber que é capaz de muitas coisas. Apesar de algumas dificuldades a vencer no cotidiano de mãe, mulher, esposa, dona de casa, profissional e tantas outras demandas que as outras mulheres sem TDAH também enfrentam com esforços inimagináveis. Só que as das mulheres com TDAH são um pouco maiores, porém contornáveis com apoio de Terapia Cognitiva Comportamental, participação da família e tantos outros recursos que podem e devem ser acessados.

1. http:/www.additudemag.com/resource-center/adhd-women.html

2. https:/psychcentral.com/blog/archives/2014/09/14/the-secret-lives-of-women-with-adhd/

3.http:/www.adhd-institute.com/expert-scientific-insight/scientific-insight/women-with-adhd-report-more-severe-symptoms-than-men/

Julho/2020 C-ANPROM/BR//1996